A peste
Albert Camus“Se você quiser filosofar escreva romances”, registrou Camus em seus carnets. Este conselho seria paradoxal não fora a longa tradição literária francesa que de Rabelais a Sartre, passando por Voltaire ou Diderot, nunca deixou de imprimir ao pensamento abstrato o movimento e o calor da vida. Com A Peste, escrita em 1947, Albert Camus tenta a demonstração de um novo cogito cartesiano: “Eu me revolto, portanto nós somos”. Pois a revolta individual contra o absurdo é também revolta coletiva a favor dos valores que a própria revolta revela.
Alegoria da condição humana, A Peste é também uma alegoria de acontecimentos históricos ainda recentes. A cidade de Orã assolada pela epidemia lembra a França ocupada da Segunda Guerra Mundial e a infecção do nazismo. Romance de resistência, portanto, em todos os sentidos da palavra.
Meursault, o anti-herói de O Estrangeiro, revive, aqui, com os traços do jornalista Tarrou. Mas a trágica trajetória de um destino meramente individual assume, em A Peste, sua verdadeira dimensão. O absurdo é universal. Nada melhor – como já mostrara André Malraux na sua fase romanesca – do que uma crise coletiva para revelar ao indivíduo acuado os valores não individuais – políticos, éticos, metafísicos – que constituem sua preciosa individualidade. Como o próprio Malraux, como Sartre e como tantos outros intelectuais e artistas franceses dos meados do século XX, Camus descobre a primazia do coletivo. Com suas personagens lúcidas e atormentadas, cujas histórias particulares se encontram repentina, mas decisivamente emaranhadas nos fios de chumbo da História, o romance A Peste pode ser lido como a crônica deste descobrimento.
Savvas Karydakis (Tradutor e professor de francês nascido no Egito (1934-2012))